Vejo-o a dar uns toques, de AllStar nos pés e suspensórios atirados sobre as pernas, bola sem cair no asfalto e sorriso a levantar o lábio junto ao canto da boca, como o vento sob um lençol a secar no arame. Aquele riso vem com um dedo esticado na direcção dos adversários e a outra mão sobre o estômago segurando a gargalhada para que não rebente em úlcera. Demasiado? Atira-se de corpo esticado em descanso, na horizontal, sobre os 90 graus da cadeira, lápis-com-ponta-de-borracha mordido no canto da boca e o olhar sobre o horizonte, a driblar papelinhos argentinos e festejos em azul-celeste.
Há sempre aqueles momentos na vida em que não queremos meias-medidas. Não gostamos de meios-termos. Nada de nins, só sim ou sopas. Nada de morno. Tem de escaldar ou queimar, de tão gelado. Ou ser picante como o raio, deixem-se de paladares insossos. Di María! Grita o speaker... É daqueles jogadores que se sustentam nos excessos, prego a fundo com travões de 11 anos, estrada encharcada e sem protecção nas bermas. É dos que inventam mil «oitos» numa recta só porque nada na vida tem de ser simples e, se for, deixa de ter piada. Gosto de jogadores que são assim, capazes de arriscar mais um ponto e vírgula numa frase de três linhas.
Também percebo os outros. Os que são tão bons quando são simples que seriam terrivelmente maus se quisessem complicar. Di María só resulta porque há Cardozo e Saviola e não mais dez como ele. Porque Aimar se faz de simplicidade e Carlos Martins de vontade. Hulk também precisa de Falcao, de um Meireles, de um Micael ou Guarín. De um Rodríguez. Já Liedson deveria ter a companhia de mais dez levezinhos neste Sporting. Ou nove e um Nani chico-esperto. Ou oito, Nani e o agora estupidamente mal-amado (ou quase) Izmailov.
Entendo a obsessão de qualquer argentino em ser Maradona ou Messi, o único que já não aspira a tal. Entendo que um passe-de-letra intensifique um golo de Cardozo e valha o risco só por si. Tal como percebo que Madjer tenha sido bem mais do que um golo de calcanhar ou Maradona, já que falámos nele, tenha acrescentado a cada momento mágico em Nápoles mais um inglês prostrado no Golo do Século. Di María é assim e, mesmo sendo assim, ninguém tem sido como ele. Está a pouco de ser coroado rei das assistências. E continua a ter falhas, defeitos, momentos em que nos queima com gelo sobre a pele e nos faz duvidar da verdade de Jacques de La Palice, seja ou não erro de interpretação. S`il n`était pas mort il serait en vie!
Um artista como Di María faz-nos valorizar também os que não o são. Os Ramires, os Amorins, os Pedros Mendes deste mundo. Deus não existia sem o Diabo! Mas há momentos que nunca esquecemos e procuramos lembrar entre cada tremoço e golo de cerveja, e esses são dos outros. O rapaz não inventou a letra nem reclamou a patente, mas poucos esquecerão o golo ao AEK ou o passe para Cardozo. Porque não faziam sentido e fizeram todo o sentido. Porque a verdade quase sempre é relativa e, no futebol, não há uma única absoluta. Porque o futebol pode decidir-se numa jogada, num único minuto em 90. E todos os outros 89 podiam ser usados para a Meia-Maratona. S`il n`était pas mort il serait en vie!!!!!!! Lapaliçada!
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