“À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica/ Tenho febre e escrevo./ Escrevo rangendo os dentes”. Que melhor começo senão Álvaro de Campos e a sua Ode Triunfal para uma crónica sobre a inesquecível cabazada do Dragão? Falar do jogo? Da canalhice do Luisão? Do penalty por marcar por mão do Sálvio? Dos três frangos – um verdadeiro, a driblar um steward, e dois do Roberto (limpinho, é também muito à conta desta abécula que estamos a cair a pique)? Nada disso. Melhor é mesmo começar pelo Álvaro de Campos - também ele um grande benfiquista – se bem que no meu caso “escrevo rangendo os dentes” porque padeço de bruxismo de stress.
Como afirmei na passada semana, dirigi-me ao Estádio do Dragão munido de um bilhete falso. Não passei da tentativa: duas horas antes do jogo, quando passava ali pela confeitaria Estádio, em frente à Praça Velasquez, apanhei com uma bola de golfe na cabeça e perdi os sentidos. Acordei no início da segunda parte, profundamente sedado, numa cama do Hospital da Prelada. Graças aos anestésicos, consegui ver o jogo até ao fim calmamente, como se estivéssemos a fazer um treininho desastroso contra o Cova da Piedade. Apercebi-me, também, da presença de inúmeras bolas de golfe dentro do relvado do estádio. Provavelmente foram arremessadas do Monte de S. Roque, vizinho cimeiro do Estádio do Dragão. Não creio que a zelosa segurança deixasse passar um animal vivo para dentro do estádio, quanto mais umas dezenas de bolas de golfe. Ou vice versa.
Mas vamos ao que interessa: existe, no genoma benfiquista, um código de terror que se activa sempre que o Benfica se desloca à casa do F. C. do Porto. É um facto inegável na História Benfiquista que o Benfica já entra no Dragão a perder. Toda a gente o sabe, se bem que apenas poucos o admitem. E, a bem ou a mal, o Benfica acaba sempre por conseguir o resultado com que lá entrou. (É um facto que o ambiente gerado pelo anfitrião pode, à luz de certas normas de Direito Internacional, ser considerado de guerra, mas tal facto não releva para a teorização que ora se apresenta). Na gíria futebolística, este código de terror tem o nome de borra. E a borra monumental que o Benfica emana quando vai chez F. C. do P. iniciou-se, concretamente, na era de Artur Jorge de Braga Melo Teixeira, provavelmente o mais nefasto treinador que alguma vez sentou o derrière num banco benfiquista. Aliás, convém não esquecer que é no consulado desta espécie de Rei Midas ao contrário que ocorre o lendário pedido de substituição de Tavares em San Siro, por lhe ter dado a borra. Que me recorde, nos últimos quinze anos, nunca o Benfica entrou sem medo em casa do F. C. do Porto. Nunca. Nem mesmo quando lá ganhou por dois a zero, na época de 2004/2005.
Ora, parafraseando um velho teórico do futebol, a borra define-se como um estado psicossomático que atinge treinadores e futebolistas e que consiste num misto de medo, de pequenez, de angústia existencial bebida em Kierkegaard e, amiúde, forte indisposição gastro-técnico-tático-intestinal. Haverá melhor descritivo para o modo como o Benfica entrou em campo no Dragão? Talvez apenas o medo de existir tal como idealizado por José Gil. Mas esse não tem a força de uma grande borra. À borra deste fim de semana acresceu, claro está, um tratado de desinteligência Jesuana, digna de um hara-kiri japonês ou de uma rescisão amigável por falta de condições para continuar. Rescisão essa que inclui, como bónus, a oferta dos passes de Roberto Gago, César Peixoto e Franco Jara. Em quatro meses, Jesus conseguiu a proeza inédita de estuporar tudo o que erigiu na época passada. Um pouco como Rei Midas, mas ao contrário, sim. O próprio Benfica, como diria João César Monteiro, já voltou a parecer-se com “o Benfica arrastando-se nos relvados”.
Depois desta copiosa e vergonhosa derrota, chegou a altura de repensar o benfiquismo. É isso que me proponho fazer, até porque andar a escrever sobre derrotas e mais derrotas já me começa a custar um pouco e o meu estômago queixa-se disso. Daqui em diante, eu, Carlos Pringle, sistémico teórico do Benfica, proponho-me, neste mesmíssimo espaço excogitar, numa série de ensaios a que chamarei Prolegómenos de Todo o Benfiquismo Futuro, a essência desse mesmo benfiquismo. Termino como comecei, com uma citaçãozinha de grande oportunidade, fazendo minhas as palavras de Jorge Costa: "podem encomendar as faixas". É que a Liga deste ano está feita. Desde o jogo da Supertaça.
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