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25 outubro 2011

Luís Piçarra e a chama imensa

Quando lhe perguntavam pela profissão, Luís Piçarra, eterno aluno de arquitectura, costumava dizer que era um técnico do canto.


Quem tornou conhecida, pelas quatro partidas do mundo, a canção "Avril au Portugal" (Coimbra), quem criou "Granada" ou "Copacabana, princesinha do mar", quem levou milhares de adeptos do Benfica ao delírio cantando "Ser Benfiquista" foi Luís Raul Janeiro Caeiro de Aguilar Barbosa Piçarra Valderazo y Ribadeneyra ou, muito simplesmente, Luís Piçarra. O nome pomposo, dizia-se, vinha de um avô castelão de Valencia de Mombuey, e de uns duques, seus primos. Mas o tenor, modesto, dizia que era apenas alentejano. Alentejano de Moura, onde nasceu em 23 de Junho de 1917.

De Moura para Lausanne
O pai de Luís Piçarra era um rico proprietário e quando o rapaz mostrou interesse pelos livros mandou-o estudar para Lausanne, na Suíça, onde fez a primária. O liceu já foi em Lisboa, seguindo-se a matrícula na Faculdade de Direito, em Coimbra. Não era, no entanto, Direito o destino do cantor. Volta para Lisboa onde o espera a Escola de Belas Artes. A arquitectura começa em Lisboa e acaba em Paris na École des Beaux Arts, sem completar o curso. Mas sempre com o estudo do canto e da música pelo meio. E é por isso que, ainda jovem, se estreia na Academia dos Amadores de Música na ópera "Barbeiro de Sevilha", com os louvores da crítica especializada: "uma voz famosa", "uma verdadeira revelação", "um lindo timbre".
Com tão "lindo timbre" aparece logo um empresário que convida o jovem cantor para um espectáculo feérico chamado "A Lenda dos sete cravos". E a seguir vem o italiano Tito Schippa a cantar no Coliseu e Luís Piçarra de partida para uma carreira internacional.




"Um cara bom d
e verdade"
Aos 28 anos, Piçarra viaja para o Brasil e é aí que conhece Agustin Lara, autor de "Granada", e Braguinha com "Copacabana, princesinha do mar" que o artista canta vezes sem conta em shows de grande êxito. Os brasileiros não se cansam de o ouvir porque ele se revelou "um cara bom de verdade". Do Rio passa para Buenos Aires onde reencontra Tito Schippa a preparar-se para cantar a "Manon". Mal sabia Piçarra que iria, em breve, substituir o Schiappa que adoecera subitamente. O êxito foi enorme e o empresário que o contratara leva-o até ao Egipto, Grécia, Turquia, Síria, etc. No Cairo é contratado para cantar para o rei Faruk. É também por essa altura que Raul Ferrão lhe envia uma cantiga a que chamou "Coimbra" e que o tenor transforma em "Avril au Portugal". Uma gravação e cerca de dois milhões de discos vendidos.

"Ser benfiquista…"
Quando Luís Piçarra conhece Edith Piaf formam uma dupla que fica famosa. A Guerra acabara e Paris era uma festa. Piaf deu-se bem com o português de Moura e gostou de cantar com ele em dueto. Era o tempo de Maurice Chevalier, de Armstrong, de Domenico Modugno, de Tino Rossi, de Luis Mariano. O "trovador romântico da Europa" , apesar dos êxitos que alcança pelo mundo inteiro, não esquece Portugal . Nem o Benfica, o clube do seu coração. Sócio número 635. O hino do Benfica, de autoria de Manuel Paulino Gomes, director do jornal do clube, era cantado no Estádio sempre que a equipa entrava em campo e, conta-se que, para os mais supersticiosos, não era de bom agoiro esquecerem-se da "alma imensa das papoilas saltitantes"… isto é ,"as camisolas berrantes // que nos campos a vibrar //são papoilas saltitantes". O hino do Benfica em todo o seu esplendor…

999 canções em disco
Foi o próprio Piçarra que, um dia, contou que gravara 999 canções, escritas por compositores tão diversos como João Nobre, Manuela Câncio Reis, Agustin Lara ou Raul Ferrão. Quase todas foram êxitos que o cantor interpretou pelo mundo inteiro. Em casinos, em clubes, em teatros, do Líbano ao Canadá, da Itália ao Estados Unidos, Piçarra ganhou muito dinheiro e, tal como ganhou, também o gastou.
Eclético, Piçarra era tão bom nas canções como a interpretar opereta ou teatro de revista. Ao lado de Amália Rodrigues, cantou na opereta "Rosa Cantadeira", no Teatro República no Rio e depois em São Paulo. Sempre com grande sucesso ou não fosse ele "um cara bom de verdade". Já em África, o nosso "globtrotter" do mundo, viaja da África do Sul para Luanda onde vai encontrar os militares portugueses em campanha. Convidam-no para cantar e ele segue os soldados em direcção Norte. É ali que caem numa emboscada e o cantor, para se salvar, passa longas horas dentro de um pântano. Quando consegue sair para lugar mais seguro, percebe que está rouco. É tratado num hospital militar e volta às cantorias.

A voz perdida para sempre
Ainda em Luanda, dirige o Centro de Preparação de Artistas da Rádio, que abandona em 1975 para regressar definitivamente a Portugal. Com a mulher e três filhos, sem dinheiro, sem voz, Luís Piçarra prepara-se para alguns anos infelizes. Perdida a principal ferramenta do seu trabalho, a voz, dedica-se a pequenos trabalhos e pede a reforma. Dezoito contos! Vale-lhe, mais tarde, a Secretaria de Estado da Cultura que lhe concede, em 1992, a pensão de mérito cultural no valor de 120 contos. Diga-se, por ordem de Pedro Santana Lopes. Muito doente, recolhe, com a mulher Beatriz, à Casa do Artista, onde morre três meses depois, a 22 de Setembro de 1999. Tinha 82 anos e, segundo deixou escrito, continuava a acreditar na humanidade.

Maria João Duarte




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